segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

ESPÍRITO DE NATAL
Nas festas de fim de ano ouvimos com muita frequência a frase: vou entrar no espírito de Natal. Às vezes me dá impressão que o Natal é um aparelho com um botão interruptor: off, on.  A verdade é que o espírito de Natal é um estado que deve ser vivido constantemente durante todos os dias do ano, a fraternidade, o amor pelo próximo, a renovação da fé. É algo para ser constante em nossa vida.
O que realmente devemos comemorar no dia 25 de dezembro? Como está nosso espírito neste Natal, dentro da ótica cristã?  A árvore iluminada na sala, quanto vamos gastar em presentes, o que terá na ceia não importa tanto como sentir no ambiente a mensagem viva do aniversariante deste dezembro mágico. Toda a família está unida? O perdão já eliminou aquelas desavenças que ocorrem no calor das nossas emoções? Não adianta termos a despensa cheia, se não conseguimos doar nada para quem tem tão pouco. Importante é ter dentro de nós a preocupação com aqueles que esperam uma visita, um telefonema, uma carta, um e-mail...
O espírito do Natal deve estar entre pais que descobrem tempo para os filhos, em amigos que se reencontram e podem parar para conversar, no respeito do celular desligado no teatro, na gentileza de quem oferece o banco para o mais idoso, na paciência com os doentes, na mão que apoia o deficiente visual na travessia das ruas, no ombro amigo que se oferece para quem anda meio triste, perdido, na gentileza no meio do trânsito. Não basta só ver o Natal nas vitrines enfeitadas, no convite ao consumo, é preciso perceber o enfeite que a bondade faz no rosto das pessoas generosas. O espírito do Natal entra definitivamente em nossas vidas, através do abraço fraterno, da oração sentida, do prazer de andar sem drogas e sem bebidas, do riso franco, do desejo sincero de ser feliz e, de tão feliz, não resistir ao desejo de fazer outras pessoas também felizes.
Deixe o Natal invadir a sua alma, entre os perfumes da cozinha que vai se encher de comidas deliciosas, no cheiro da roupa nova que todos vão exibir. Abraça-te à tua família e façam alguns minutos de silêncio, que será como uma oração que subirá ao alto e retornará com um presente eterno, duradouro: o suave perfume do nosso Criador, perfume de paz, amor, harmonia e a eterna esperança de que um dia todos os dias serão como os dias de Natal. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

QUE VENHAM OS ANOS

Hoje senti, literalmente, que estou ingressando na terceira idade, ou maturidade, ou  melhor idade, que não me parece ser verdade. Como ouvi de uma senhora esses dias, esta é a melhor idade para os farmacêuticos, médicos, fisioterapeutas... Enfim, estou envelhecendo.
Na recepção de um consultório médico, bancos todos ocupados, eu de pé encostada à parede. Uma jovem, com não mais de 20 anos, me olhou muito gentil e sorrindo fez o gesto e pergunta derradeira: a senhora quer sentar?
Fiquei constrangida, encabulada, pronta pra dizer não, mas não quis ser indelicada e aceitei a oferta agradecida e resignada.
E ali fiquei no banco, refletindo sobre o fato. Se estão me dando preferência em assentos é porque meus traços acusam minha idade ou até mais. Até pouco tempo esta era uma ação em que o sujeito ativo era sempre eu.  Agora acabava de me transformar no sujeito passivo. O fato levantou-me dúvidas: será que eu não notei que os anos passaram tão rápido assim? Será que todos me veem como uma senhora que deve ter direito aos acentos preferenciais? Abateu-me uma espécie de crise etária. Ainda me sinto jovem, disposta, minha cabeça e disposição não passam dos quarenta. Nos magazines de roupas femininas nunca me dirijo aos departamentos com roupas para senhoras. Prefiro aqueles de roupas mais despojadas, que diminuem a minha aparência de cinquenta. Sinto-me na idade da loba, mas com o fato que acabara de ocorrer senti  que estou mais pra tartaruga marinha.
Confesso que saí do consultório com a autoestima abalada. E pra levantar o moral, fui pra um café, pedi um cappuccino com chocolate de avelã. Já que a idade me dá o aval, me sinto liberada para certos prazeres, mesmo que engordem. E o rapaz que me trouxe o café diz: a moça quer açúcar ou adoçante? Sorri – adoçante, por favor.
Entre as sentenças ‘a senhora quer sentar’ e ‘a moça quer açúcar ou adoçante’, senti certa equidade. Fez-me julgar que estou bem. Tomei o último gole de café e comi com gosto o chocolate de avelã com sabor de quero mais. E que venham os anos, de preferência com mais sabores que dissabores. 

sábado, 26 de novembro de 2016

NO ANO QUE VEM



No ano que vem eu vou, terei, farei, haverá. Quando eu conseguir, tiver, fizer. Quando eu me aposentar...
Esta é a frase mais pronunciada nesta época. Tudo o que não iniciamos, continuamos ou terminamos no presente, transferimos para um tempo posterior ao que se fala. Falamos como se o ano que vem fizesse parte de um futuro longínquo e mágico. Tão distante que haverá tempo para realizar projetos e sonhos deixados pelo caminho, em meio a horas desperdiçadas. Hoje é o futuro de ontem e passado de amanhã. Então o futuro é tempo que já era ou nunca será. Quem saberá? O que temos certeza é que hoje é o nosso melhor presente. É este momento que estou escrevendo, está calor e o céu escuro parece trazer chuva. Agora são dezenove horas e vinte oito minutos e acaba de cair a conexão da minha internet. Meu vizinho está chegando do trabalho, ouço o barulho da chave na fechadura da sua porta. Estou com sede. Enquanto pego a água espio meu gato deitado no sofá da sala, de olho numa lagartixa na parede, próxima da janela. Coisa graciosa a figura de um bichano circulando pela casa, roçando-se nas nossas pernas, com miados próprios pra cada situação que só nós, seus donos, compreendemos. Volto a escrever e a chuva começa cair.
Agora é o momento que tu estás lendo este texto. Já pensou que se deixasse para outro dia, talvez nunca mais lesse?
 Muito pior do que conjugar os verbos no futuro do presente é pronunciá-los no futuro do pretérito ou do passado: eu deveria, queria, poderia; se eu tivesse, se eu pudesse... Existem pessoas que passam a vida planejando o futuro para o ano que vem. E morrem querendo ter feito, ter ido, ter tido e ainda culpando os outros por tudo o que deixaram de executar, justificando fracassos, erros, acomodação.
O “ano que vem” é daqui alguns dias. Como saber se estaremos aqui? Depois do jantar vou escrever a primeira página do livro que estou planejando começar desde o ano passado.




sexta-feira, 11 de novembro de 2016

TEMPOS DE PRIMAVERA

Da minha janela do quinto andar, observo o espetáculo da reprodução das aves e plantas. Ainda ontem estava tudo tão cinza. Folhas caídas, galhos secos, pássaros encolhidos. Chuva e neve, água e ventania. De repente tudo se refaz como se fosse um milagre – e é!  A brotação aparece de uma hora para outra.  A passarada corta o ar em reboliço. Voam de cá pra lá, fazem ninhos nos lugares mais imprevisíveis. É preciso reproduzir! Os ventos fazem sua parte, sopram, assobiam, transportam. Uma pressa de vida se derrama no ar.
A palavra ‘primavera’ tem origem do latim ‘primo vere’, que significa ‘começo do verão’.  Muitas primaveras se passaram desde que emplaquei por aqui – casualmente no mês de setembro. Algumas foram de cantos e muitas flores, outras nem tanto. Acho que é assim para todo mundo. Primavera, verão, outono, inverno... O importante é que toda estação vai e volta. Entre uma temporada e outra os amores e dissabores nascem, morrem, reciclam-se. Além de ser a estação onde a natureza floresce ao nosso redor, a primavera também é o período em que nossas almas ficam mais coloridas, cheias de ânimo e novas energias. 
O escritor Jeocaz Lee-Meddi, brasileiro nascido em Goiás, que escreve sobre o nosso tempo e sobre o passado histórico, tem um pensamento que diz assim: “Não prometas nada que vá além da próxima primavera. Nenhuma fidelidade resiste à insatisfação humana, se assim o fosse, Adão estaria até hoje no Éden, fiel às promessas de Deus”.  Desde que li isto, programo minha vida entre uma primavera e outra. O que durar mais, é lucro!  Parece-me que a natureza toda se projeta desta mesma forma, no interstício das estações.
Também voltei a ouvir o sabiá nas madrugadas, entoando suas notas em vários volumes, escalas e variações, na copa do Flamboyant. Dizem que um sabiá não canta igual ao outro. Eu acho que é verdade. Cada sabiá tem sempre uma variaçãozinha, uma notinha diferente, um novo piado que avisa: - desse jeito só eu canto!  
Só não tenho como saber se é o mesmo sabiá da primavera passada.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

AGENDA PRA VIVER BEM

A semana começa com limitações no café da manhã. A recomendação é uma fruta, uma fatia de pão integral torrado com manteiga light, uma fatia de queijo branco, uma xícara de leite de soja. Depois ao menos uma hora de exercícios físicos, não pode faltar meia hora de caminhada. Tem que ter o lanche da manhã, porque se recomenda seis refeições leves por dia. Pode ser uma barra de cereal light, ou uma ameixa fresca, ou três castanhas do Pará. O almoço deve ser leve. Duas colheres de arroz integral, um prato de sobremesa de salada de rúcula, um filé de frango com gengibre, uma taça de abacaxi com raspas de limão. Repousar após o almoço recarrega as energias e nos torna mais prolíferos. Então faça isso.  Ah e não se esqueça da xícara do chá verde, do suco detox, de comer maçãs, cereais... Para a janta, sempre antes das 20h, um prato fundo  de sopa de grão-de-bico com inhame e espinafre é a melhor escolha. Tempere tudo com azeite de oliva extra virgem, de preferência os com acidez inferior a 0,5%, que por sinal são mais caros.
Banhos frios fazem muito bem à saúde, pois ativam a circulação e melhoram a pele. Carne de peixe ao menos uma vez na semana não pode faltar na sua mesa.  Não podemos esquecer de fazer checapes periódicos na ginecologista, dermatologista, cardiologista, otorrino, gastro... Para as mulheres que já passaram dos cinquenta, tem a fase da reposição hormonal. Tomar hormônios, vitamina D, cálcio, e ao menos vinte minutos de sol por dia. Quando se tem outros problemas de saúde, não se esquecer dos horários dos medicamentos, que podem ser para a pele, para o sangue, para os ossos, para o colesterol, pressão, diabetes, estômago, coração, para os nervos, pra pampa que o pariu.
É fundamental passear e conversar com as amigas. Dançar faz bem à alma, revigora nossas energias. Ir ao cinema, teatro, shopping, viajar, namorar. Portanto, ponham na agenda estas atividades ao menos uma vez por semana. Contato com a natureza, ter tempo todo dia para a família e amigos, meditar, fazer um trabalho de caridade, espiritualizar-se, dormir, ouvir música, se possível aprender a tocar um instrumento musical. Visitar velhos conhecidos, escrever e ler, nem que seja a coluna de esportes do jornal. Ter um animal de estimação, sem esquecer que isso envolve idas e gastos com veterinário, vacinas, ração, pet shop, e tempo pra passear ao menos duas vezes por dia, principalmente se o bichinho for um cão. Beber dois litros de água por dia é condição ‘sine qua non’. Nada de muito sal na comida e, por favor, corte os carboidratos. Fazer sexo com certa frequência diminui os riscos de infarto fatal.
E se você ainda não se aposentou, tem que ter o tempo para trabalhar. E para estar com boa disposição e produtivo, é importante dormir ao menos oito horas por noite. Existem muito mais itens que não cabem em apenas uma crônica, mas talvez caibam na sua rotina. Se você consegue administrar tudo isso na sua agenda de 24 horas, considere-se uma pessoa excepcional, atípica, abnormal. Boa sorte!

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

SUBINDO A LOMBA
A vida é uma lomba. Ou, a vida é feita de lombas. Desde criança, até hoje, escalo muito. Quando comecei o ensino primário, e isso já faz um bom tempo, descia e na volta da escola, subia, em torno de dois quilômetros por uma trilha íngreme, cheia de matos, macegas e medos.
Agora, sempre que volto da academia, subo mais ou menos um quilômetro de lomba. E numa dessas subidas vinha pensando, quanto eu já lombeei nesta vida. E não só eu, vocês que estão me lendo, também. A maioria! Senti-me cansada, pesada. Deve ser porque não tenho mais  vinte e poucos anos e quarenta e poucos quilos. Vim subindo em ziguezague, pra caminhada ficar menos custosa. Na metade da lomba, parei e olhei para trás. Havia feito um bom pedaço, mas ainda faltava outro tanto pra chegar em casa. Segui no meu ritmo, pensativa das coisas da vida.
Nossa caminhada por este chão às vezes é plana, limpa, descomplicada. Noutras vezes, o percurso é escarpado, cheio de sarças e frinchas. Difícil! À medida que a vida segue, vamos perdendo a força física, mas com a experiência aprendemos a driblar as adversidades. Como por exemplo, caminhar em ziguezague numa lomba.  Parar no meio da etapa e tomar um gole d’agua ajudam muito; ter a consciência maina, também, porque quando a consciência está maciça, o peso é dobrado. No caminho encontramos pessoas de todo gênero, sempre buscando o mesmo que nós: trajetórias fáceis. Mas como cantava Raul Seixas ‘é de batalhas que se vive a vida’. E subir lombas tá no pacote.
Mas eu quero uma folga destas tantas subidas na minha vida. Tenho sede de mar e planícies. Quero ar fresco e sombra. Se eu mereço, não sei, mas querer é meu direito. E enquanto sonho com oceanos e várzeas continuo a marcha, quebrando esquinas, atravessando atalhos.

sábado, 1 de outubro de 2016

ZONA CENTRAL

Ontem fui ao centro da nossa capital. Costumo postergar minhas idas, acumulando compromissos e tarefas que sou obrigada a fazer naquela região. Assim quando vou faço tudo de uma vez só, que é pra não ter que voltar tão cedo.
Mas desta vez fui com mais tempo e calma. O suficiente para observar e sentir tudo o que se passava ao meu redor e, choquei! O nosso centro está feio e sujo, mal cuidado, cheio de ambulantes de todo tipo, vendendo de tudo em qualquer lugar. Tá virado numa zona, no sentido mais pejorativo da palavra. Parece não haver mais regularização nem restrição. Até feirinha de frutas e verduras tem no chão de várias esquinas. E pra completar o caos, como estamos em véspera de eleições, a cada metro quadrado um cabo eleitoral oferecendo panfletos, santinhos, colinhas e bandeirolas. Gritaria, ruído, zoeira! Pontos de ônibus sempre lotados, na hora do pico as filas se arrastam calçada afora. Vê-se rostos cansados, peles suadas, olhos perdidos, expressões indignadas. Porto Alegre não é mais ‘Horizontes’ como cantava Kleiton e Kledir nos anos 80: ‘Há muito tempo que ando nas ruas de um porto não muito alegre e que, no entanto, me traz encantos e um pôr-do-sol me traduz em versos, de seguir livre muitos caminhos, arando terras, provando vinhos; de ter ideias de liberdade e ver amor em todas as idades’.
Há vinte e poucos anos quando me mudei do interior pra capital, sentia e respirava a beleza dessa Porto Alegre cantada em versos. Agora sinto minha querida Porto cinza e mal cuidada. A violência desenfreada, é um câncer que deixa o povo desassossegado. No centro a ordem é apertar a bolsa entre os braços, andar ligeiro e atento, ou de preferência não carregar bolsa nenhuma.
Nas imediações do Mercado Público e na Voluntários, final de tarde é uma balbúrdia. Todos apressados, correndo, se esbarrando. Uma neurastenia coletiva.
Respiro e procuro a beleza dentro deste rebuliço. Há muito pra se admirar; a graciosidade é perene e o encantamento se esconde por trás da desarrumação. Quem sabe os novos gestores eleitos possam exumar a Porto Alegre extraviada e trazer de volta a cidade que tem um jeito legal. A cidade que ‘me faz tão sentimental’. E poderei, então, cantar sem receio: ‘Não diga a ninguém, Porto Alegre me tem; não leve a mal, a saudade é demais; é aqui que eu vivo em paz’.

sábado, 10 de setembro de 2016

DEVOÇÃO

À vezes alguma palavra fica martelando na minha cabeça. Vem-me toda hora à mente, futrica minha imaginação. Por que acontece? Não sei, deve ser uma questão de neurotransmissores, ou não.
Tais impulsos, seguidamente,  me remetem ao dicionário, em busca de significados. Gosto dos significados, que são aquilo que alguma coisa quer dizer, o sentido.
Hoje acordei me lembrando de ‘devoção’. E ela tomou conta do meu dia.  Segundo os entendidos, devoção é ‘piedade ou sentimento religioso; expressão de adoração a Deus e aos santos através de práticas religiosas: tinha devoção por Santa Rita de Cássia’. Mas também significa afeição; dedicação, amor ou afeto demonstrado em relação a alguma coisa, ou alguém, como por exemplo: a sua devoção ao teatro era sincera. Ou quando se adora ou venera: sua esposa era sua verdadeira adoração.
O mundo moderno, tão pusilânime nas coisas de Deus, não entende mais o significado da palavra devoção. Hoje, na maioria dos casos, as práticas devocionais não passam de sentimentalismo subjetivista que nos mantém aprisionados ao passado. Tudo precisa ser processado, ruminado, oferecido sem que seja preciso sacrifício ou esforço. Sim, porque a devoção reivindica estes dois substantivos. Para conversar com Deus, criar mais intimidade com ele e se aprofundar na fé através da palavra ou da oração, é preciso dedicação. Como diz uma música do Gil: se eu quiser falar com Deus, tenho que aceitar a dor, tenho que comer o pão que o diabo amassou, tenho que virar um cão, tenho que lamber o chão...
Abnegação é tarefa difícil. E, da mesma forma que a devoção a Deus exige empenho e zelo, também é preciso devotamento e cuidado nos relacionamentos interpessoais, para que vinguem e se mantenham.
Quem tem devoção pratica o afeto e o amor. E praticar o afeto e amor, com renúncia e desambição, não é empreitada fácil. É predicado só dos espíritos altruísticos.

Um compromisso submisso, rebuliço no cortiço, chame o Padre "Ciço" para me benzer, oh, com devoção.”

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AMORAS NA JANELA

No jardim da minha vizinha tem um pé de amoras. Mas apenas as raízes e o tronco são da vizinha. Os galhos, as folhas, flores e frutos, penderam todos para o meu lado.  Quando estudei Direito, especificamente na disciplina das obrigações, lembro-me de um artigo do código civil que diz que “os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram...”. Então, conforme dispõe a lei, as amoras da vizinha são minhas!
 Mas isso não tem a menor importância para mim, nem para a vizinha. O que importa mesmo é a beleza que se forma na minha janela, principalmente nesta época do ano, entrada da primavera. As folhas rechearam a copa; os frutos ainda estão verdes, mas carregam os galhos e logo estarão amadurecendo. E os sabiás e bem-te-vis alvoroçados, pulam de cá para lá, cada qual tentando criar uma melodia maioral para encantar as fêmeas e conseguir iminente acasalamento.
Os ramos estão quase entrando na minha sala, mas não vou arrancar uma folha sequer. Quero acompanhar este espetáculo da natureza bem de pertinho. Lembro-me dos primeiros brotinhos que surgiram há um mês. Cada manhã, a amoreira ficava um pouco mais verde e agora é um mar de folhas.  E minha casa se irradia de cheiro verde e vigor.  Quando tem sol, a sombra da amoreira se desenha no meu chão. E eu caminho sobre esta obra de arte.
Quando os frutos maturarem, terei amoras vermelhas ao alcance da minha mão. De manhã, ao levantar, vou abrir a janela e compartilhar com os pássaros um saboroso café com amoras.  Será uma festa só. 

sábado, 20 de agosto de 2016

IDADE DO LIMBO

Etimologicamente, limbo tem origem no latim limbus, cujo significado é beira, orla, borda ou margem. Com base na origem da palavra, o significado figurado de limbo revolve sobre o estado daquilo que é negligenciado, esquecido, ou seja, está no limbo. No Catolicismo, o limbo é conhecido como o destino daqueles que não receberam o sacramento do batismo. Informalmente, usa-se o termo limbo no cotidiano para dizer-se do lugar onde coisas sem importância são esquecidas ou onde guardamos aquilo que julgamos sem utilidade ou função ativa.
Pois bem, eu descobri que estou na idade do limbo. A idade entre os cinquenta e sessenta anos, é um tempo onde não somos mais nem uma coisa nem outra. Passamos da idade balzaquiana, da idade da loba e viramos cinquentonas. Nem um termo específico tem essa idade. Estamos na fase do climatério que precede o término da vida reprodutiva da mulher, marcado por alterações somáticas e psíquicas e que se encerra na menopausa. Algumas mulheres chegam aos cinquenta com essa fase superada, outras não. Mesmo já estando aposentadas da nossa atividade profissional, não podemos usufruir alguns direitos das sessentonas, como passagem de ônibus gratuita, meio ingresso em shows, teatro e cinema, prioridade nas filas, etc. Eu digo que este período corresponde à  uma adolescência da terceira idade. Uma fase metamórfica. Antigamente, se falava na ‘idade crítica’, referindo-se à idade do climatério. Concordo em grau, gênero e número com este termo. Nada mais crítico do que sentir-se entrando na terceira idade, com todos os sintomas e crises possíveis, com deficiência de colágeno, queratina, cálcio, vitamina D, tendo que tratar tudo isso, fazer reposição hormonal, mas sem os direitos e benesses que ainda estão por vir. Para mim, esse sentimento é aquele que vivenciamos quando não encontramos o nosso lugar. É quando não nos encontramos em canto algum. Momento de transformação. Mudanças que trazem muitos desconfortos, breves para algumas, prolongados para outras.
Grosso modo, "ficar no limbo" significa morrer sem poder entrar no céu nem ingressar no inferno. Cinquentonas, bem-vindas ao umbral, sem perder a  esperança de alcançar o éden, no menor tempo e sofrença possíveis. 

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

PREJULGAMENTO

A maioria de nós tem o costume, ou defeito, de ver uma pessoa ou situação e já fazer um juízo, sem saber muitas vezes, nem o nome da criatura, nem a origem e veracidade dos fatos.  Olhei e não gostei e ponto final. E não me venha dizer que você não é assim, não tente eximir-se de culpas. Pelo menos uma vez você prejulgou.
Eu perdi a conta das vezes que prejulguei. E admito que oitenta por cento dos casos me enganei. E me enganei feio. Eita defeitozinho medíocre, de nós humanos, preconceituar, predefinir.
Uma das vezes que me aconteceu, depois de quase estar odiando aquela pessoa, tive a oportunidade de trocar meia dúzia de palavras com ela, saber seu nome, sua profissão, de onde era entre outras coisas básicas. Mas já foi o suficiente pra eu engolir no mínimo cinquenta por cento do meu julgamento precoce. Alguns dias a mais de convivência, eu já estava admirando a criatura. E um pouco adiante, já tinha certeza que ela era bem melhor do que eu. Não que me subestime, mas ela se superou diante do meu parecer inicial.
Depois disso tento me vigiar e até orar, pra me precaver desta falha de caráter, que deveria até estar na lista dos sete pecados originais.
Prejulgar é feio, é pobre, é egoísta, é mesquinho. Coloca-nos abaixo da sola do chinelo. A gente se engana com as pessoas, isso faz parte das interações, mas não nos dá o direito de fazer juízos, destilar nosso azedume língua afora.
Todo prejulgamento corre sérios riscos de falir ou ferir, e causar prejuízo.
E já que toda essa questão tem o prefixo ‘pré’, melhor mesmo é nos precaver de julgar sem conhecer.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

FIM DE TARDE


Desde criança os fins de tarde me trazem certa melancolia. Nunca pude identificar exatamente que sentimento é esse. No passado era uma mistura de saudade do dia que se acaba, ansiedade do escuro da noite que sombreia o horizonte, e a incerteza de um amanhã que está por vir. Hoje, olho pela vidraça da minha sala de estar, o sol curto de inverno, manda um breve adeus. Tão breve que quando chega sua hora derradeira, mal consigo apreciar sua beleza, exprimir um sorriso cor-de-rosa e deu. Ele se foi. E tudo ao meu redor passa a ser meio temeroso. Os móveis que já não avisto direito, os carros na rua, com os faróis baixos acesos; gatos miando nos telhados e um frio na minha barriga. Não alcanço o interruptor de energia para acender a luz. Um mal estar me assola por dentro. Alguma coisa na noite me traz aflição. E esta paralisia é somática. Como se o movimento fosse evocar lembranças que não desejo mais ter. Travo uma luta entre meus sentimentos e a realidade. Gostaria mesmo que este sol se estendesse por mais tempo. Que o dia não fosse tão breve e a noite não se demorasse tanto.
O barulho da porta me traz ao presente. Meu filho chega da rua com toda agitação e energia próprios da idade. Passa como num pé de vento e só ouço a frase ‘me faz um lanche que vou pro treino’.
As pernas me carregam até a cozinha e minhas vontades já não existem mais. Agora é atender ao pedido que meus ouvidos acataram. Penetro na realidade junto com o cheiro de bacon que sai da torradeira. A noite pende inteira lá fora. E só resta abafar meus receios na precisão das horas. 

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O VALOR QUE SE DÁ


O dia amanhece nublado, outra vez. É inverno, normal. Acordo e abro a veneziana do meu quarto, devagar, com medo do tempo estar fechado. E está!
É sábado, e eu quero sol. Mas a natureza é quem sabe, é quem manda. Penso no valor que tem um dia de sol. Ele aquece, energiza, estimula a vitamina D, anima a vida. Quando tem sol sentimos vontade de abrir as janelas da casa, de estender roupas no varal, de caminhar no parque, tomar chimarrão na praça, levar o cachorro pra passear.
Penso no valor que tem tudo aquilo que nos falta ou que não vemos. Neste sábado foi o sol. Noutros dias são pequenas coisinhas que se tornam enormes se não as temos ao nosso alcance. O abraço de um filho, o colo da mãe, a palavra de apoio do pai, o aconchego de um lar. O afeto de um amigo, um ombro que nos acolhe. A flor no jardim, no vaso da sala, ou na beira da estrada. O cobertor que aquece. O cheiro de um café passado, e tantas outras coisas valorosas que se perdem no infinito das horas.
Enquanto conjecturo, o céu vai se abrindo, e já sinto alguns raios do sol latejando no  meu rosto. Momento, para mim, de valor inestimável. Um bem que não troco por nada. Nenhum suborno privar-me-ia do prazer que este sol me dá. Pequenos prazeres, grandes satisfações.
E assim é a vida. Como um bolo recheado de vários sabores. Tem gente que valoriza uma dedada de merengue, outros uma colherada de recheio ou uma fatia generosa. Mas tem os que não se saciam. Empanturram-se com o bolo todo e nem sentem o sabor das camadas.  E os farelos restam pras formigas, que por saber dar valor, ficam com a melhor parte. 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

QUEM SOU

Nascemos dependentes, parte de nossas mães. Com afeto e alimento, crescemos. Afeto muitas vezes falta. Alimento, em certas circunstâncias também. Assim vamos evoluindo. Caminhamos, falamos, brincamos, estudamos. E chega a adolescência. A personalidade está formada. As impressões da primeira e segunda infância, boas ou ruins, já estão impregnadas. No decorrer do tempo vão-se mostrando. Na busca da identidade é que, muitas vezes nos perdemos. E nesse caminho tortuoso, acertando e errando, é que sofremos e crescemos. Uns mais, outros menos.
Nossa identidade é algo que vai mudando com o passar dos anos. E muitos chegam aos cinquenta sem saber exatamente quem são. Como diz Fernando Pessoa: o eu profundo e os outros eus! Alguém também disse que somos três: aquele que pensamos ser, aquele que os outros veem e o que somos de verdade. É aí que está o xis da questão: quem somos de verdade?
Eu sei que tenho vários  eus. E certa vez escrevi: ‘gostaria de poder agradar todas as mulheres que me habitam’. Mora em mim a filha, a mãe, a esposa, a amante, a dona  de casa que eu não queria ser, a profissional que eu não consegui ser, a escritora e mais as outras tantas que perdi pelo caminho.
A escritora é quem insiste em ficar e eu luto pra manter. Essa me faz bem. E quando sofro e choro é na ponta da caneta que busco consolo. E quando estou animada e feliz, ela palpita comigo.
Dessas várias personalidades que me habitam, algumas, sinceramente, eu gostaria de exonerar, me despojar. Outras eu aprecio e convivo bem.
Mas a escritora, intensa, sensível, delicada e complicada, se sobreexcede.  Resistente, inventiva e contumaz, sobrevive a todas as demais.
Essa me incita, me abriga e me liberta. Só nela encontro paz e sossego pra minha mente inquieta. 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

EM DIAS FRIOS

O inverno abeirou forte nesses últimos dias. Hora de descer os cobertores nos armários, puxar os edredons, vestir os casacões, mantas, gorros e botas. Ligar aquecedores, lareiras, fogões. Tempo fechado, sol aparece a conta-gotas, frio corta a pele do rosto, arrepia o cabelo. Dias perfeitos para hibernar. Tomar um mate quente ou um café e sorver junto com uma boa prosa ou leitura. Isso também depende das preferências de cada um. Tem quem prefere enrolar-se numa manta e ver um bom filme no sofá da sala, com um chocolate quente. Não importa o meio, o importante é estar aquecido.
Mas aquecer-se não é só uma questão de se encontrar provido de roupas e meios externos, é algo mais. É sentir-se envolvido num clima completo de bem estar e aconchego. Não envolve apenas um ato, mas uma sucessão deles. É um ritual. Quando se tem fogão à lenha, então, a liturgia é completa. O aquecer parte da busca da lenha, da retirada das cinzas antigas da fornalha, preparar o fogo, acender e alimentar as chamas. E junto vem: aquecer água pra o chimarrão, café, quentão ou similares; fazer pipoca, rapadura ou bolinho de chuva. A culinária varia de acordo com a descendência e costumes. Como disse uma amiga, o fogão é o rei do inverno. Impera sobre todos os outros métodos de calefação. È majestoso e envolvente; domina o ambiente sem ostentar. A lareira é charmosa, mas o fogão é cativante. Ter um fogão em casa é tradição e cultura.
Isso tudo me faz lembrar a infância. Um lugar de invernos rigorosos e fogão aceso o dia todo. A casa ficava quente e eu apreciava, da vidraça, o vento frio assoviando baixo e dobrando as copas; o chuvisqueiro fino que às vezes virava neve. Tinha pipoca com melado, rapadura, chimarrão e café de chaleira. Sem contar os pães quentes saídos do forno à lenha, sorvidos com alguma outra iguaria. Nesses dias ficava ruim trabalhar na lavoura, então se ficava em casa conversando ao redor do fogo e se recebia visitas. Um vizinho, um familiar distante, sempre havia alguém. Hoje em dia quem deseja apreciar esses costumes da nossa terrinha, paga bem caro por um local que forneça essas práticas como lazer.
E não podemos esquecer os moradores de rua, os desamparados, os irmãos menos favorecidos. Sempre há um agasalho, um alimento quente e um pouco de afeto sobrando na nossa vida, que pode fazer a diferença para o próximo. A solidariedade também é uma forma de aquecer nosso coração. 

domingo, 15 de maio de 2016

PERSISTIR

Gosto deste verbo. É intransitivo, forte. Conforme seu sentido literal, expressa constância, insistência, obstinação. Quem persiste, não desiste, apesar da dificuldade.  Insiste, prossegue. O termo também pode ser usado como predicativo, no sentido de continuar a ser, perdurar. A lembrança desse termo me veio agora à memória, diante do desenrolar dos fatos políticos que estamos vivenciando nos últimos meses. Acredito que todos vão concordar comigo, independente de posição política, que a presidenta, hoje afastada do governo face ao impeachment, é uma clássica persistente. Diante de tantas adversidades, manteve-se convicta na defesa do seu mandato. Poderia ter se resignado, renunciado. Mas isso não é do seu perfil. E como boa representante do gênero, não decepcionou a classe feminina. Foi valente e guerreira, não desacreditou em si. Eu, particularmente, persisto em acreditar na política, apesar dos fatos me mostrarem que talvez não valha a pena.
Persistir é ter fé. E fé é um sentimento total de crença. Ter fé é postura contrária à dúvida e está intimamente ligada à confiança. Portanto, persistência e fé são parentas muito próximas.
Persistir no erro é burrice; persistir no acerto é atitude, ousadia. Não existe pessoa meio persistente, ou ela é ou não é. Quem persiste sabe que se um caminho não der no que quer, encontrará outro. O importante é vislumbrar saídas, e não renunciar. Manter constância nos nossos propósitos.
Persistência é substantivo feminino usual para os fortes de espírito. Sinônimo de perseverança para quem busca vencer obstáculos.  Numa linguagem mais simples, pura teimosia.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

FAZENDO FALTA

Enquanto ajeito minhas gavetas, Joana canta “to fazendo falta”, na Antena 1 ao vivo. Podem até considerar uma música meio jeca, mas eu gosto. E na voz da Joana, ficou esplêndida: ‘Você pode ter um tempo pra pensar e uma eternidade pra se arrepender, tá na cara dá pra ver no seu olhar, tô fazendo muita falta pra você’.
Penso no que ou quem me faz falta. Suponho que eu também devo fazer falta a alguém, ou não. Todos somos insubstituíveis, nas nossas singularidades. Até os nossos defeitos deixam saudade. Em algum instante da nossa trajetória, marcas sólidas vão se desenhando. E vamos escoando vida afora, carregados de ‘ais’. Um familiar que partiu; um amigo que se perdeu, um amor mal resolvido, um bichinho de estimação que fugiu de casa, ou morreu de velho. Quanta falta faz, o abraço estreito e a fala mansa daquela pessoa com quem convivemos um bom tempo e esse mesmo, por contingências adversas, baniu do nosso convívio. Como diz outra letra: ‘você que ontem me sufocou de amor e de felicidade, hoje me sufoca de saudade.’ Ai, ai, ai. Dá um nó na alma, uma dor glacial, uma vontade de suplantar a sorte e viver tudo de novo. Mas sem os mesmos equívocos, certamente.
Acontece também, sem termos consciência, na maioria das vezes, de sentirmos falta de nós mesmos. Extraviamo-nos dentro das nossas escolhas, deixando um cadinho de nós cá, outro lá, e chega um momento que não nos encontramos mais. Nossa identidade resta desagregada. Muitas vezes nem lembramos mais do ponto de partida. É a hora de se concentrar e buscar o fio da meada. Um encontro conosco, trará boas recordações, fará um bem enorme pra qualquer alma inquieta. Faz falta resgatar nosso arquétipo e nos reconstruir mais firmes, pra não ir perdendo biela por esses caminhos ruidosos, e ao final restar em fiapos.
Sinto falta do cheiro da velha casa da minha mãe, que já partiu. E de outros tantos registrados no meu olfato. Me faz falta algumas oportunidades que extraviei, alguns desacertos não ajustados; alguns amores não compreendidos, porque sempre fui meio distraída e não pensei que eram pra mim. Tá fazendo falta alguma paz, algum sossego, que devo ter esquecido num canto qualquer. 
Acho que to sentindo falta de mim. Preciso me buscar. 

sexta-feira, 29 de abril de 2016

PENSE NISSO 


Como é difícil começar alguma coisa. Não sei se é assim pra todo mundo. Pra mim é. A gente sabe que tem que fazer. A gente quer fazer. Mas alguma coisa nos trava. E vamos adiando a casa pra limpar, a organização do roupeiro, as flores pra replantar, a poeira na biblioteca, o livro pra terminar a leitura, o texto pra escrever... Achamos mil desculpas que nos desviam do caminho da finalidade. E nossos projetos vão esmaecendo. É certo que algumas vontades não dependem apenas da nossa ação mental e física. Como viajar, por exemplo, dependerá das nossas economias, e quando elas vão mal, estagnamos. Um projeto mais ousado, de abrir um negócio, dependerá de inúmeros fatores, que se sobrepõem à simples força volitiva. Começar um regime ou frequentar uma academia, então, quem de vocês já não planejou isso para uma segunda-feira qualquer?  E os que começam na sexta, geralmente não chegam até a segunda. Seguidamente, damos a largada nas intenções. Mas lá pelas tantas, num ponto qualquer do caminho, começamos a fraquejar. Não fazemos num dia, no outro não dá por causa de um isso ou de um aquilo. Depois vem o final de semana, tem que se estar com os filhos, e na semana que segue haverá outras quimeras. E o propósito inicial, já não passa de uma deficiente e malformada concepção, vítima de sucessivos abortos. Uma intenção que ficará para o futuro, pra terminar quando der.
Pior ainda é quando estamos dentro de um projeto maior e se deixa todos os outros desejos pra depois. Como por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical, aprender outras línguas, fazer algum trabalho voluntário. Isso nem depende de questão monetária; hoje em dia tem vídeo-aulas e sites na internet que nos possibilitam todos esses aprendizados. Menos o trabalho voluntário. A caridade roga por nossa presença cara a cara, corpo a corpo. Fora disso não há salvação.
Assim, as postergações funcionam como grilhões enormes e pesados, que nos escravizam a uma zona de conforto. Ficamos inanimados como um cascalho. E o tempo passa do mesmo jeito, sem promessas ou delongas.
Se der comece hoje, se não, pense nisso. 

terça-feira, 26 de abril de 2016

MEU BAIRRO



No bairro onde moro, crescem gramas entre as calçadas. Já vi até bem-me-quer. As ruas são meio tortas, desniveladas. Mesmo assim, alguns dias atrás a Prefeitura asfaltou a rua principal, que é a minha. Ficou bom, mas os carros agora correm mais. E isso não é bom para as crianças e jovens que gostam de brincar, conversar ou tomar cerveja na beira das calçadas.
Tem a Igreja, e todos os domingos de manhã e terças de tarde, reza-se missas. O pátio da Igreja é amplo, com um bonito jardim e uma escada que vai da rua até a porta do templo. Em junho de todos os anos, que é o mês do santo da igreja, acontece a festa com  procissão. Milhares de pessoas circulam agitadas pelos arredores. A minha rua, que é a mesma da igreja, é bloqueada para os automóveis e é onde a procissão passa, pela manhã e à noitinha. Os devotos e pagadores de promessas vão cantando com velas nas mãos, sobre as cabeças. A rua até parece um grande manto iluminado, movendo-se lentamente. E as moças solteiras fazem encomendas de graças, e pagam outras alcançadas, acendendo velas de sete dias, ou velas de mais de um metro, no velário.
Na praça, as crianças ainda andam de balanço e gira-gira, enquanto os pais tomam chimarrão e sol nos bancos. Numa esquina tem uma agência de beira de estrada. Ali se faz panfletos, toldos, cartões, faixas e outro escambau. E também muita lambança. Salão de beleza tem uns cinco. Uma farmácia e um açougue, três supermercados e uma padaria, que é uma tentação. Finalzinho da tarde, quem passa para, porque o cheirinho do pão fresco convida para um café. E quando alguém entra não é só um pão que leva. Pega bolo, croissants, pasteizinhos de queijo, tortilhas de limão...
Duas linhas de ônibus e uma lotação fazem o transporte coletivo. Às vezes cheios, às vezes vazios, depende do horário. Início da manhã e final de tarde, sempre lotado. Minha vizinha da frente só anda de lotação. Deve ganhar bem, porque a passagem é cinco e vinte e cinco, subiu. Tem também muitos gatos e cachorros, que latem por qualquer coisa: quando outro cão se aproxima, quando um gato atravessa a rua, ou quando o carteiro passa. Em noite de lua cheia, os gatos namoram nos telhados, soltando gritos esganiçados de fúria e prazer. É uma orgia.
Se eu tivesse podido escolher, com certeza não escolheria esse bairro para morar. Mas cheguei aqui por circunstâncias alheias. E como nem todos moram onde querem, eu também moro onde eu posso. E é aqui que eu posso morar. Sei que não saio daqui tão cedo, por isso aprendi a gostar deste lugar. Comecei apreciar as coisinhas miúdas que me acontecem. Banalidades, acasos, coincidências. Este bairro é o meu presente, que curto e compartilho.