quinta-feira, 13 de julho de 2023

 

MOMENTO DO CHIMARRÃO

 

Todos sabem que os sul-rio-grandenses têm o hábito e apreço por uma roda de mate, herança dos índios guaranis que habitavam o território do que são hoje a República do Paraguai e o estado do Paraná, e que foi difundida pelos padres jesuítas no tempo das Missões. Contam os historiadores que os indígenas eram famosos por sua vitalidade, força, alegria e hospitalidade, graças ao consumo da infusão dessa espécie de chá, com folhas fragmentadas da erva-mate.

Até hoje, parece que a erva-mate, bem cevada numa cuia de Porongo, continua sendo sinônimo de satisfação, gentileza, acolhida... Um deleite!

E digo mais, muitas discórdias entre outras querelas, são resolvidas numa roda de chimarrão. Parece que o ato de chupar na bomba metálica desse chá verde, vai aquietando os ânimos exaltados. Ninguém grita no momento do chimarrão, as pessoas sentam, geralmente em roda, para dialogar, cantar, trocar ideias, entre outros assuntos vigentes. Enquanto a cuia vai passando parece que algo mágico acontece, e mesmo aquele que esteja meio tresloucado, vai serenando com o passar do mate. E quando se toma o mate sozinho, é instante sagrado de reflexão.

Aqui em casa, tomamos chimarrão todos os dias antes do almoço. E tem uma coisa importante: a cuia deve sempre andar no movimento do laço, ou seja, a volta na roda do mate deverá partir pela direita daquele que serve a cuia. É um momento quase sacro. A gente conversa sobre vários assuntos, fazemos planos, traçamos projetos, que às vezes nem se cumprem, mas o que importa mesmo é que nessa ocasião colocamos os assuntos em dia e idealizamos.

Beber chimarrão tem muitos benefícios para o corpo físico, um deles é a ação vasodilatadora, diminui os lipídios do sangue, reduz os níveis de colesterol, que, por consequência, colabora na prevenção de doenças cardíacas e vasculares. Mas o que me anima mesmo no chimarrão é esse ato de celebração, é o desejar, sonhar que tem uma ligação direta com momentos que estão por vir, como um período de prosperidade, tranquilidade com a vida, harmonia e equilíbrio interior. Beber chimarrão é um ato atávico que estimula nossa mente e ao mesmo tempo alimenta de paz o nosso espírito.

terça-feira, 28 de março de 2023

 

TERAPIA DE SALÃO

 Cheguei às 14h para ser atendida às 14h30. Marisa escovava o cabelo de uma cliente, enquanto Karine fazia a unha de outra. Sentei, e como não tinha revista para ler e eu não levara nenhum livro, fiquei ‘furungando’ no celular e ouvindo as conversas que rolavam no salão.

A cliente falava dos procedimentos estéticos que havia feito nas áreas íntimas, como depilação a laser e colocação de ácido hialurônico na ‘piriquita’. Fiquei atenta, nunca tinha ouvido falar sobre aplicação de tal produto nessa área. A conversa se desenrolava, a cabeleireira contava da colocação de ‘fios’ nas laterais das faces, mas que não resolveu muito para levantar as bochechas e tirar a ‘cara de buldogue’ e o ‘bigode chinês’. Karine levantou-se para ir ao banheiro, parou diante do espelho e se olhou, levantou um pouco a blusa e bateu a palma da mão na barriga: ‘ficou ótimo, pensei que ficaria algum sinal da lipo, mas ficou tudo lisinho’. Entendi que havia feito lipoaspiração abdominal, e o abdômen dela estava mesmo bem definido e bonito. Depois ouvi algo sobre uma cara que encontrou alguém num aplicativo de relacionamento e o fulano se fez passar por um cidadão cheio de boas intenções, contudo, depois de algum tempo, ou melhor, de muito tempo e alertas das amigas, a mulher começou a perceber que ele só estava interessado na grana dela. Nisso a cliente se manifesta: ‘ah, nessas eu não caio, já me pegaram uma vez, mas a segunda não’. A manicure começou a contar sobre o ex, que só queria saber de andar de jet-ski, não pagava a pensão com pontualidade, mas era um bom pai para a filha; que ele tentou várias vezes retomar a relação, mas ela não quis de jeito nenhum, estava ‘enrolada’ com outro cara. Nisso Marisa intervém: ‘mas que tu gostava de trepar com o ex, é fato né?’. ‘Sim’, responde Karine, ‘mas são águas passadas, agora quero alguém que me preencha em tudo, inclusive me sustente, porque o dinheiro que eu ganho é só pra cuidar de mim’. A cliente dispara: ‘tu tá certíssima, homem tem que bancar a mulher mesmo, essa história de dividir contas e contar moedas é fria’.

Eu, calada, não ousei opinar, muito menos falar alguma coisa da minha vida pessoal, pelo menos naquele momento. Porém, me chamou atenção o fato dessa troca de experiências da mulherada, quando se reúnem num salão de beleza. Interagem, desabafam, riem e às vezes até choram.

Chegou minha vez de ser atendida. Marisa puxou a cadeira (divã) para eu sentar e perguntou sorrindo: ‘e tu, mulher, como está’. Resumi minha resposta em poucas palavras: ‘com dor na lombar’. ‘Ihhh, deve ser puro estresse emocional.’. ‘Talvez’. ‘E teu marido?’ ‘Vai bem’...

domingo, 9 de janeiro de 2022

 

O MUNDO DE MAIKON

Todas as manhãs caminho na pista de 200m que tem numa praça perto da minha casa. Tem muitas árvores e uma passarada permanente que sobrevoa de um galho para outro, fazendo ninhos, cantando, criando filhotes. É um alvoroço!

Eu faço vinte voltas, o que resulta em quatro quilômetros. É nesse momento do meu dia que entra o Maikon. Ele é um rapaz com problemas, não sei que tipo de retardo ele tem, nem qual o CID, mas o comportamento dele é incrível. Ele incorpora personagens e vive intensamente no mundo que ele imita. Muitas vezes ele está na praça caminhando também. Quando me vê dá bom dia e começa me acompanhar na caminhada. Incorpora o instrutor da academia que tem próximo dali, onde ele costuma ficar quase o dia todo. Caminhando ao meu lado ele vai corrigindo minha postura, lembrando que tenho que caminhar reta e coloca o dedo no meu abdômen dizendo: ‘postura, postura’. Eu me corrigo e sigo. Ele continua no papel de meu treinador: ‘respira, respira, abdômen contraído’. Pergunto sobre a namorada dele. Ele diz que ela está na academia. Daí comenta que de tarde é instrutor numa academia lá na Protásio Alves, e que vai de bicicleta até lá. Então ele para de caminhar, mas continua ‘me instruindo’. Encostado na barra de ferro onde a gente se alonga, ele permanece com a postura idêntica do treinador da academia. Quando eu termino a caminhada e vou para os abdominais ele continua me corrigindo. De punho fechado, bem como se faz depois da pandemia, ele dá tchau e sai rumo à academia. Noutros dias já vi Maikon com uma roda de direção de veículo que alguém deve ter conseguido para ele, e também um crachá da companhia de ônibus que circula no bairro. Ele diz que é ‘motorista da Carris’. Então desempenha intensamente este outro papel.

Confesso que às vezes sinto inveja do Maikon. Vontade de viver outro personagem, que não fosse eu mesma. Viver, por alguns instantes do dia, a vida de outro, de preferência alguém que admiramos, deve ser uma experiência incrível. Sair da nossa realidade em momentos oportunos, eu acredito que pode nos fazer um bem enorme.